
Em texto publicado aqui no Blog, falei um pouco sobre a diferença entre populus e demos e como o primeiro presta um papel discursivo fundamental no que se convencionou a chamar de populismo. Hoje queria trazer, também brevemente, outro aspecto fundamental na construção narrativa do dito populismo: a noção de que a realidade é diretamente acessível por nossos sentidos, em outras palavras, de que é possível entendermos os fenômenos “em si”, como se sua interpretação fosse sempre evidente e não intermediada por coisa alguma.
A mais óbvia aplicação disso é na “vontade popular” ou no “interesse nacional”. São dimensões geralmente evocadas como meros instrumentos discursivos e, por serem auto evidentes, não precisam ser justificados. A vontade do povo é óbvia: eu consigo enxergá-la apenas com base na minha vivência. É supostamente fácil de ser universalizada.
Há um lado disso que é a manipulação ou instrumentalização. Mas há outro mais profundo que é a crença sincera de que basta ouvir o povo ou olhar a nação para interpretar sua vontade e seu interesse, não obstante o elevado grau de abstração desses entes. Desconsidera que o “dado empírico” sensorial é pouco informativo por si só.
O processo de entendimento do mundo começa, é claro, com a colheita de dados sensoriais, mas passa por uma etapa antes de extrair deles conclusões: a interpretativa. Essa etapa é a crucial, e é nela que agem os pressupostos e as visões de mundo que informarão a conclusão. Toda conclusão é, em alguma medida, intermediada por uma epistemologia (no sentido de um conjunto de ideias e suposições, tanto fáticas quanto normativas, de como o mundo é e de como ele deveria funcionar) e a conclusão depende tanto dela quanto dos dados sensoriais.
É desconsiderar a segunda etapa, e as diversas falhas às quais uma “epistemologia implícita” equivocada pode levar, que forma a base do senso-comum e das soluções fáceis, sempre evidentes. É esse salto que permite a construção discursiva do interesse coletivo, do “agir em nome de” em oposição ao “agir com”. A armadilha da empiria tenta permitir a substituição do cidadão pelo povo, da esfera pública pela opinião pública, da política pela representação.
A ciência e a filosofia existem para preencher essa etapa. Claro que elas não são perfeitas ou sequer a única forma de conhecimento possível. Mas assumem um papel importante de nos forçar a reconhecer os pressupostos que usamos e a refletir sobre os meios de que dispomos para entender o mundo.
Foto: Beatriz Ferraz/Secom UnB
- Precisamos (voltar a) falar sobre máscaras - 03/01/2021
- Caetano, Arendt e os nascimentos de 2020 - 19/12/2020
- A coalizão de Biden é sustentável? - 16/12/2020