
O mote deste texto é claro, parto da “derrubada” ontem à noite da transmissão ao-vivo do Blog da Feira, da qual eu fui o apresentador. A decepção inicial de ter um enorme trabalho de divulgação e preparação frustrado por uma arbitrariedade de um software de inteligência artificial já, em parte, passou. Ficaram as reflexões, ainda preliminares e guiadas mais pela tempestividade que pela análise profunda, de como a chamada esfera pública digital vem mudando nossa relação com o mundo. Penso ser esse o papel do cientista social: não apenas frustar-se com os ‘choques de realidade’, mas fazer um esforço para compreender o mundo à sua volta. Compreensão é uma forma de ação; é difícil (se não impossível) agir sobre (act upon) aquilo que se desconhece.
Eventos, por si só, raramente mudam de forma profunda a história ou um curso de acontecimento, mas são frequentemente o símbolo do fim o do início de algum processo. O depoimento de Mark Zuckerberg, fundador do Facebook e dono de muitas redes como Instagram e WhatsApp, ao congresso estadunidense (foto) foi o prego que faltava no caixão da era de atitude otimista quanto às redes sociais.
O sociólogo espanhol Manuel Castells, ainda em 1996, escreveu o livro “A sociedade em rede”, onde deixava transparecer uma visão francamente esperançosa que persistiu ao menos até “Redes de Indignação e Esperança”, de 2012. Os primeiros teóricos viam na nascente internet um meio de concretizar a utopia da esfera pública universal, resolvendo a questão do acesso e da mediação ao mesmo tempo. Todos poderiam agora, em tese, comunicar-se diretamente uns com os outros, dispensando a representação e outras formas de mediação cristalizadas na experiência história das democracias ocidentais. Seria, finalmente, a era do discurso livre, dos sujeitos políticos em sua plenitude.
Hoje é difícil achar quem ainda compartilhe dessa visão. Desde, pelo menos, a eleição de Donald Trump, começou-se a analisar e a enfatizar o poder de redes de desinformação (fake news) e de ódio que se formavam online, com conivência tácita das gigantes da internet. Pior ainda: a lógica inicial de descentralização da rede perdeu-se no meio de um oligopólio de empresas como Google/Alphabet, Facebook e Netflix, que, junto com as também gigantes Amazon, Microsoft e Apple, são responsáveis por 43% de todo o tráfego da Web. A maioria dos serviços que eu e você usamos (YouTube, WhatsApp, Instagram e o próprio Facebook) são propriedade privada dessas empresas.
Em meio à crise provocada em 2018 pela revelação do uso indevido dos dados pessoais de milhões de usuários do Facebook para fins eleitorais nos EUA, propus a criação de uma nova categoria de análise do poder, apelidada “geopolítica visceral“, que
“dá-se ao nível psíquico, do indivíduo, transformando seus gostos, seus pensamentos, seus hábitos, suas frustrações e suas emoções em variáveis do cálculo estratégico, milimetricamente personalizado e friamente instrumentalizado. Nesse contexto, o conceito geopolítico clássico de poder, fortemente atrelado aos componentes militar e territorial, dá lugar a um conceito informacional e em certa medida ideacional, que passa pela capacidade de produzir e difundir informações convincentes e estratégicas, verdadeiras ou não, e de acessar e interpretar dados pessoais para direcionar essa informação.”
Naquele momento, porém, não me atentei para outro elemento fundamental nessa manipulação: o controle privado do fluxo de informações. A questão não é apenas a proliferação das falsas notícias e das narrativas enganosas. Mas o sufocamento do debate de qualidade e da liberdade de expressão autêntica. Para início de conversa, já há nas regras da maioria dessas plataformas (sendo talvez o Twitter a mais notável exceção) proibições morais, como nudez. Mas muito pior é a arbitrariedade com que as regras de conteúdo são aplicadas, não havendo uma linha clara entre o que é permitido e o que não é, e com a prática ubíqua da censura prévia aplicada por uma inteligência artificial.
O elemento humano está fora da equação. A inteligência artificial busca maximizar cliques e minimizar problemas com a justiça. O compromisso dessas plataformas com a qualidade do debate público é perto de zero. Na forma atual das coisas, a utopia da esfera pública digital universal é cada vez mais distante. Ela encontrou seus limites no pouco caso de empresas bilionárias que, como é normal das empresas, buscam maximizar lucros. E assim, a liberdade do discurso e o projeto de construção de uma esfera pública de qualidade são esquecidos no pé de montanhas de dólares.
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