O trecho abaixo é um recorte de um trabalho intitulado Boundaries within membership – ‘Membership’ beyond Boundaries apresentado no seminário Towards European Constitutionalism XVIII: Marking European Boundaries. Achei oportuno reproduzir aqui nesse momento em que o continente europeu sofre com imensos problemas de desunião e de arrefecimento das disputas entre o Norte, região mais rica, e o Sul, mais afetado atualmente pela Covid-19.
Nessa semana, outra demonstração do quão abalada está a solidariedade europeia: a Suprema Corte alemã, passando por cima da Corte Europeia de Justiça, exigiu que o Banco Central da Alemanha retirasse o financiamento a um programa de compra de títulos do Banco Central Europeu destinando a auxiliar Estados-membros com problemas de endividamento e estabilizar o Euro.
A visão de mundo liberal, tanto econômica quanto política, permeia a fundação do projeto de integração europeia. Ela se manifesta desde as liberdades fundamentais de mercado e de trabalho até a declaração sumária do Artigo 2º do Tratado da União Europeia, que menciona a base da existência de uma comunidade política e moral com o objetivo explícito de constituir uma sociedade plural, tolerante e solidária.
A instituição da cidadania europeia pelo Tratado de Maastricht, em 1990, destaca a distinção inerente à UE, sendo mais do que um mercado comum ou uma organização internacional nos moldes tradicionais, deriva sua legitimidade não apenas dos Estados-membros, mas dos próprios cidadãos (isto é, do povo e dos povos).
Questionar esses valores fundamentais (e fundacionais) dessa nascente sociedade organizada europeia é um perigo para a própria construção da comunidade, sobretudo politicamente. De acordo com o filósofo alemão Jürgen Habermas, a própria existência da cidadania democrática só é possível porque a dignidade humana, um desses valores centrais, “é como um sismógrafo que registra o que é constitutivo para uma ordem legal democrática […]. A garantia desses direitos humanos dão origem ao status de cidadãos que, como sujeitos de direitos iguais, tem uma pretensão de serem respeitados em sua dignidade humana” (HABERMAS, 2010, p. 469, tradução minha).
Solidariedade
Apesar de ser um dos objetivos declarados da sociedade Europeia, solidariedade não é um conceito de fácil definição. Deriva da fraternité imaginada durante a Revolução Francesa e evoluiu até tornar-se um paradigma constitucional do direito comunitário europeu. De acordo com Markus Kotzur, “Solidariedade opera como um princípio para alcançar objetivos comuns; por vezes impõe obrigações obrigações e responsabilidades comuns, outras vezes distintas” (KOTZUR, 2017, tradução minha).
A solidariedade é, nesse sentido, tanto um requisito para integração como uma maneira de aprofundá-la. Não se trata apenas de uma redistribuição idealista de riqueza, mas de um princípio que torna possível a existência de uma comunidade política (polity) com algum grau de coesão.
Para que a solidariedade entre cidadãos floresça, algum tipo de identificação (que não deve ser confundida com identidade nacional stricto sensu) deve existir, um amálgama para criar uma comunidade imaginada que cerca o indivíduo e com ele partilha algo. Entretanto, o mero compartilhamento de valores, de ideias ou de algum tipo de identidade não é o bastante para fomentar a solidariedade: deve haver tanto um meio de comunicação e, especialmente, esferas institucionalizadas para estimular o diálogo. “Mas isso pode apenas tomar forma concreta na medida que as esferas públicas nacionais se abrem umas para as outras” (HABERMAS, 2012, p. 48, tradução minha).
Os efeitos do déficit de solidariedade se manifestam de diversas maneiras, desde o episódio de sufocamento econômico da Grécia após a crie do Euro até a questão da liberdade de movimento (especialmente de trabalhadores) dentro da União, uma das razões que motivaram a saída do Reino Unido. A construção do chamado demos europeu encontra resistência não na falta de uma identidade, mas de uma esfera pública continental e na persistência das identidades nacionais mutuamente exclusivas.
A natureza subsidiária da identidade e da solidariedade europeia é frequentemente mal compreendida; ela se manifesta não na contradição com a identidade nacional, mas como complemento em benefício desta, que é fortalecida pela compreensão de ser parte de uma comunidade moral ampliada.
A reafirmação dos valores e da visão societária contida nos tratados é, longe de mera retórica ou ilusão idealista, o elemento capaz de manter a coesão na União. Esses valores compartilhados são a base da compreensão europeia de si, o terreno comum para a solidariedade entre os povos (e, ainda mais importante, o povo) e os blocos de construção dessa entidade de sem precedentes no direito internacional.
Referências
HABERMAS, J. The Crisis of the European Union: A response. Polity Press, 2012.
HABERMAS, J. The concept of human dignity and the realist utopia of Human Rights. Metaphilosophy 41, 2010.
KOTZUR, M. Solidarity as a Legal Concept. In: “Solidarity in the European Union”, Springer Cham, 2017.
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