
Replico, abaixo, um excerto do texto originalmente publicado no terceiro número de Petrel – Boletim de Conjuntura há cerca de uma semana.
Tempos excepcionais, como o que vivemos, tornam mais explícitas as contradições às quais nos acostumamos apenas por virtude de sua persistência. A mais recente fase da modernidade tardia, desde a queda do socialismo real, traz em si uma contradição que, repetida e aplicada à exaustão, foi promovida ao campo da normalidade institucional e, pior ainda, ganhou status de verdade científica: a expansão da globalização sob a égide do credo neoliberal.
Historicamente, os sistemas econômicos tendem a ser conectados à visão de mundo e às crenças morais em voga e o primeiro sistema a não fazê-lo foi o capitalismo (POLANYI, 2013). O conceito de “alienação” é frequentemente interpretado apenas em termos da posse material dos meios de produção, mas possui uma esfera imaterial tão importante quanto: a alienação da sociedade e seus costumes da esfera econômica, separados agora pelas ‘leis do mercado’ descobertas por Smith. Polanyi (2013) nos mostra que, em menor ou maior grau, o laissez-faire foi sendo pragmaticamente limitado pelos Estados. John Ruggie (1982), por exemplo, mostra como o chamado “liberalismo embutido” (embedded liberalism) permitiu à estabilidade do Ocidente no pós-guerra o politizar a economia, trazendo para a esfera da discussão econômica preocupações sociais o que, em última instância, dava alguma legitimidade a essa esfera.
Entretanto, a partir de Tatcher e Regan, esse ‘pacto’ entre economia e política intermediado pelo Estado social começou a declinar. Pouco depois, o “fim da história” proclamado em 1991 após o triunfo definitivo do neoliberalismo na Guerra Fria pareceu finalmente superar a lacuna entre o passado e o futuro e deslocar o ser humano da temporalidade, restringindo seu campo de ação à mera repetição de padrões de atividade econômicas que conduziriam invariavelmente à prosperidade universal, já que nenhum dos antigos três mundos poderia mais esconder-se atrás de uma cortina de ferro. Esse homem ocidental a-histórico seria o télos da modernização neoliberal e, seu imperativo, a aniquilação da temporalidade por onde passasse, levando pacificamente todo o mundo à um estado de suspensão da política e da filosofia, tornadas irrelevantes pelo funcionamento autônomo e informatizado do mercado.
[…]Após o “fim da história”, a globalização parecia uma realidade não apenas benéfica, mas sobretudo inexorável. Era questão de tempo até que as últimas terrae nullius para o capitalismo global fossem arrancadas de seu tempo (sempre o passado) e levadas ao estado de suspensão temporal no qual o Ocidente se encontrava. Nessa globalização, capitaneada pela flâmula do neoliberalismo econômico, faltava o elemento político. Enquanto a cadeia de fornecimento global e a mundialização dos processos industriais e financeiros se aprofundavam, a integração política sobre a égide das Nações Unidas movia-se a passos lentos. Mesmo o sistema multilateral, uma conquista importante sobretudo dos países em desenvolvimento no século XX, vem sendo recentemente questionado e esvaziado pelos Estados Unidos, seu maior patrocinador durante o século passado e que agora age por meio do chavão America First.
Nesse sentido, a Pandemia é um evento-síntese que explicita essa contradição da globalização neoliberal: o desmoronamento das cadeias globais de produção e o subsequente retorno ao nacionalismo econômico e ao protecionismo evidenciam a impossibilidade da globalização despolitizada. O paradoxo aqui é que um problema essencialmente global está sendo atacado com recursos Estatais precisamente porque a globalização econômica (que se desestrutura ao menor sinal de perigo) não está ancorada em uma estrutura política que permita uma governança global democrática.
A solidariedade, princípio fundamental neste momento, não pode ser cultivada apenas com laços econômicos de interesse, mas com relações comunicativas, políticas e jurídicas significativas entre sujeitosde-direito que, em liberdade, deliberam sobre a vida comum no mundo humano. Essa deliberação é mediada tanto pelo direito, que garante um lugar-comum de partida, quanto pela ação comunicativa, que assegura o respeito à ética do discurso.
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