Há uma anedota famosa quanto a origem do provérbio no título. Remonta ao Concílio de Constança, convocado em 1414 para resolver o cisma papal, naquela curiosa época quando havia dois Bispos de Roma, um deles residente da idílica cidade de Avignon, na Provença francesa. Em seu discurso, o imperador Sigismundo, do Sacro Império Romano (que, segundo Voltaire, não era sacro, nem império e muito menos romano), teria usado a palavra schisma no gênero feminino. Um monge rapidamente o corrigiu, apontando que o termo era do gênero neutro. O Imperador pergunta “como sabes?”, “meu mestre me ensinou”, “quem era teu mestre?, “um monge”, ao que o Imperador, já irritado, responde: “e eu sou o imperador de Roma!”. Nosso monge arremata a frase do título: “César não está acima dos gramáticos”. Não preciso dizer que até os dias de hoje schisma é uma palavra de gênero neutro.
Cumprindo o papel de lugar trans-histórico delegado ao Brasil por Caetano Veloso, podemos nos orgulhar de termos nosso próprio Sigismundo. Em conluio com o Ministério da Doença, ele determinou: não há mais de mil mortos diariamente por Covid-19. Como que fato arrancado das páginas de Saramago, a morte retirou-se de nosso triste país, desta vez por decreto. “No dia seguinte ninguém morreu”, proclama o General na espera de que suas palavras constituam a realidade. E disse: Haja luz, mas a luz não houve.
Revejo minhas anotações nas páginas virtuais de Hannah Arendt, a quem sempre recorro para tentar compreender o incompreensível. A veterana observadora do declínio da República de Weimar é precisa ao identificar que a “mentira política moderna lida eficientemente com coisas que são conhecidas praticamente por todo mundo”. Os dados são sabidos por todos, e nosso vice-dissidente mesmo proclama que “basta somar”. A manipulação sequer aparece como mentira, mas como “fatos alternativos” (ou doxa, opinião, para continuar em Arendt): diz-se usar apenas uma outra metodologia.
Quando a tentativa de re-escrever a realidade falha, a mentira se transforma em opinião. Não duvido que o Imperador tenha usado schisma no feminino até o fim de seus dias (mesmo após o cisma ter sido resolvido). Sua autoridade de Imperador Romano, evocada inicialmente para atestar seu profundo conhecimento do idioma clássico, agora é um fim em si mesma, e sua versão da gramática não mais se dá ao trabalho de tentar comprovar-se. “É minha opinião”, diria o monarca moribundo.
A pós-verdade assemelha-se à mentira deslavada que, baseada na suspensão da factualidade, ignora os limites objetivos do poder e da força-de-vontade. Os números cada vez menos importam. São apenas fatos políticos e, em todo caso, são verdadeiros, ao menos em meu sistema de pensamento. O Imperador de nosso conto (que apesar de ter vivido no turbulento século XV é um exímio político pós-moderno) não conseguiu re-escrever a gramática, mas isso não importa mais, já que ele criou um schisma no próprio idioma e agora, imbuído do mais puro solipsismo, fala o seu próprio latim-imperial. E nesse idioma, o maior número, claro, é M.
- Na contramão da discussão nacional, Feira aumenta tarifa de ônibus - 19/07/2023
- STF, direitos humanos e inteligência artificial - 30/03/2023
- Mais fortes são os poderes do povo - 28/03/2023