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No Brasil da pandemia, todos são a favor da democracia, exceto aqueles que não são. Pois hoje me arrisco a comentar um dos conceitos mais difíceis do vocabulário político moderno, correndo o risco de incorrer em imprecisões ou mesmo de esbarrar na falta de um doutorado na evolução do conceito do grego koiné ao português contemporâneo, passando, é claro, pelo búlgaro antigo. E, como de costume, é pela palavra em si que começo: já falamos antes aqui, nesta coluna que não se pretende esclarecedora, do demos grego, o povo em seu sentido participativo. Demos é o agente, o sujeito político, aquele que não apenas existe em abstrato, mas marca presença na Ágora para discutir os assuntos da Pólis.
Aristóteles foi um dos primeiros a reconhecer o caráter dúbio da democracia. Em sua tipologia das formas políticas, que se divide entre as “boas” e as “degeneradas”, a democracia é a única a aparecer nas duas categorias: é a pior dentre as melhores, e a melhor dentre as piores. Alguns séculos depois, Madison faz uma defesa da República (representativa) contra os males da democracia (direta) no Federalista número 10.
A fusão operada na Revolução Americana entre República e Democracia é no mínimo curiosa, aos olhos da tradição. Rancière, trazendo Aristóteles para a França do século XXI, usa o velho heleno para classificar o rito do sufrágio como típico de uma aristocracia, na melhor das hipóteses, ou de uma oligarquia, na pior delas. Democracia não combina com eleições, na verdade é o oposto delas.
Há sempre um desejo de contenção ou de limitação na dialética da democracia. A democracia é um bem-mal que deve ser contido em seus inevitáveis excessos pela República, pelo sistema aristocrático-representativo ou pela limitação constitucional. O absurdo democrático é o governo “daqueles que não tem qualquer título para governar”, ou seja, que não tem uma autoridade maior ou mais fundamental que o acaso de terem nascido em uma comunidade política. Seus excessos precisam ser limitados e o poder deve ser exercido por alguém com título: o dinheiro, o saber, o voto.
E justamente esse “potencial democrático” que assustava o constituinte estadunidense a tal ponto que o fez instituir as regras eleitorais quase incompreensíveis que perduram até hoje.
Jacques Rancière: “O escândalo democrático consiste simplesmente em revelar o seguinte: não haverá jamais, com o nome de política, o princípio uno da comunidade que legitime a ação dos governantes a partir de leis inerentes ao agrupamento das comunidades humanas”.
Esse escândalo, essa aberração para a tradição filosófica – tão disposta a encontrar o ‘bom governo’ no mundo das ideias – esbarra na concepção pós-moderna de mundo: todo princípio superior de legitimação foi derrubado; somente o homem (pode ser) a medida de todas as coisas; somente a fala pode justificar algo, e todas as falas podem justificar “algum algo”. O esfacelamento das grandes narrativas, sejam elas as da religião, da ciência ou da filosofia, trouxe um desafio adicional para a política, qual seja legitimar-se no mundo pós-secular. Tanto que narrativas neo-messiânicas estão a todo vapor…
O que chamamos de democracia? Rancière, novamente, nos diz que “é uma forma mista: uma forma de funcionamento do Estado fundamentada inicialmente no privilégio das elites ‘naturais’ e desviada aos poucos de sua função pelas lutas democráticas”. Esse pensamento nos puxa de volta à realidade cotidiana e situa a democracia como um processo, não um princípio. É a complicada dialética dos direitos, que ora são ‘proclamados’ e depois ‘efetivados’, mas frequentemente são ‘conquistados’ para então serem ‘reconhecidos’.
Isso não tira, de maneira alguma, o valor de toda a construção jurídico-política que nos trouxe até aqui. A república constitucional não é a vilã da história – aliás, política não é um musical da Disney – nem uma antítese por si ao ideal (que permanece ideal como qualquer outra tipologia de formas de governo) da democracia (à qual precisamos, para resgatar seu sentido original, adicionar o sufixo “plena” ou “direta”). É uma construção histórica, dotada de significados que mudam a todo momento. Se é verdade que adota um princípio aristocrático (para não dizer oligárquico) de legitimação, é mais claro ainda que seu sentido não se esgota aí, mas se aprofunda na fecundidade dos significados que a vida política pode adicioná-lo.
No fundo, operou-se, desde a Revolução Americana, uma re-significação dos conceitos herdados da antiguidade europeia e do esclarecimento na vida política moderna. E justamente aqui podemos encontrar, para aqueles mais ansiosos, uma potencial fonte de legitimação da política: na prática política. É uma tautologia, mas diria que é preferível a uma teleologia inconsequente.
Se nosso sistema político opera nos limites entre a aristocracia (tecnocracia), a democracia (pluralista), a democracia (populista) e a oligarquia (elites políticas), talvez seja de relevância secundária. Talvez a classificação não seja o mais interessante agora, mas sim as re-significações. Incorporamos ao campo da política áreas da vida que tradicionalmente não podiam estar mais distantes dela, como a caridade e a família. Talvez essa seja a disputa e nosso tempo, a politização da vida humana e seus significados.
Mas no fundo, estou divagando sobre algo que não pode ser discutido em tão poucas linhas. Termino por aqui, sem conclusão, porque não pretendo solucionar a política e a filosofia em uma coluna de início de segunda-feira. Quanto a pergunta do título, vou arriscar uma resposta insatisfatória ao leitor: a democracia é o que fazemos dela.
Na foto: Jacques Ranciére